Foto: Warley de Andrade/TV Brasil
A pandemia que estamos sofrendo é a tormenta perfeita para as compras públicas. De um lado, o rápido aumento do número de casos graves força uma corrida dos serviços de saúde por compras públicas, gerando um aumento global da demanda por equipamentos e suprimentos médicos; de outro, lockdowns em fábricas e comércio em geral, paralisam atividades comerciais, limitando aceso a uma produção que não pode acomodar a crescente demanda no curto prazo. Consequentemente, a lógica da licitação pública se inverteu: governos perderam seu poder de barganha e vendedores passaram a dominar o mercado.
Aproximadamente 80 países impuseram algum tipo de restrição à exportação de insumos médicos, não só limitando a oferta global, mas causando o aumento desproporcional dos preços devido à redução da disponibilidade. E além da competição (desleal) entre os países para acessar o estoque mundial de produtos médicos, em muitos países, como o Brasil, a concorrência interna entre governos federal, estaduais e municipais também se acirrou e piorou o quadro.
No Brasil, para reduzir o risco de desabastecimento e dar celeridade aos processos de compras públicas, as regras para contratações emergenciais foram ainda mais flexibilizadas com: (i) permissão de contratação por valores superiores às estimativas e até mesmo a total dispensa da referência; (ii) realização de contratos de longo prazo; (iii) possibilidade de contratação de empresas inidôneas e a dispensa de exigências de regularidade fiscal e trabalhista e, ainda, do cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação.
Em seguida, nova norma definiu condições para se realizarem pagamentos antecipados, que passaram a ser condição básica para se conseguir negociar com fornecedores, especialmente os da China, maior fabricante de equipamentos médicos de proteção individual do mundo.
Todas essas mudanças não foram suficientes. O típico comprador público brasileiro é acostumado há quase 20 anos a fazer só pregão para a compra de bens, sem um respaldo de procedimentos detalhadamente prescritos em lei. Tradicionalmente, no Brasil, as licitações e contratações são planejadas sem a aplicação de métodos de gestão estratégica de compras como análise do gasto, mercado, risco, ou estratégia, entre outros.
Com o aumento da escassez dos produtos médicos, da escalada dos preços e da criticidade, todos eles poderiam ser considerados como “itens estratégicos”, dado seu impacto, valor e alto risco. Por esse motivo, a boa prática recomenda estabelecer parcerias de longo prazo com os fornecedores visando garantir o fornecimento.
Entretanto, embora a lei tenha autorizado os contratos de longo prazo na resposta à pandemia, dispensou as já poucas exigências de qualificação previstas, sinalizando aos gestores a desnecessidade de fazer uma adequada avaliação da capacidade e da idoneidade dos fornecedores para assegurarem a garantia de suprimento.
Desde abril, operações das polícias Civil e Federal, do Ministério Público e da Controladoria-Geral da União têm acontecido com frequência média de três ou mais por semana e envolvem negócios suspeitos relacionados a respiradores, aparelhos de proteção, máscaras e estruturas de hospitais de campanha, que movimentam uma cifra de 1,5 bilhão de reais. As denúncias atingem pelo menos 18 estados.
Um estudo de caso feito pelo Banco Mundial para aquisição de equipamentos e materiais médicos por meio de uma de suas operações identificou que a maior parte das denúncias se referia a superfaturamento (40%) seguido por inadimplência do contratado (15%). Análise da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre 19,8 mil contratações realizadas no âmbito do combate à Covid-19 por estados, capitais e outras grandes cidades projetou em R$ 1,9 bilhão o sobrepreço aplicado em compras desde o início da pandemia no Brasil, em março. Somados, os contratos chegam a R$ 13 bilhões.
Uma grande parte dos problemas nessas compras públicas pode se explicar por uma aplicação inadequada da pesquisa de mercado. Por exemplo, vamos supor que no Brasil há três fornecedores de ventilador pulmonar, que importam da Alemanha, da Inglaterra e da China, respectivamente. Em fevereiro de 2020, o auge da pandemia e lockdown na China apresentam um contexto que favorece as compras de quem importa dos outros dois países. Mas a situação pode ter mudado totalmente em abril.
Essas análises de mercado e da cadeia de suprimentos são práticas corriqueiras no setor privado, que reavaliam a resiliência dos fornecedores e até dos fornecedores dos fornecedores: algum deles depende de suprimentos de mercados que aplicam lockdowns ou têm proibições de exportação? Algum deles perdeu muitos clientes e está em dificuldades financeiras? Conhecer esses aspectos e obter informação estratégica sobre o mercado podem limitar os riscos de superfaturamento, de atrasos ou, mesmo, de não entregar nada.
Com o objetivo de auxiliar gestores públicos nas aquisições realizadas para o enfrentamento da COVID-19, a CGU lançou em 3 de julho um painel gerencial para dar transparência a contratações relacionadas à pandemia. O painel distribui as informações em cinco tipos de consulta diferentes: aquisição de bens, aquisição de insumos, contratação de serviços, comparativos e análises, e inclui diferentes entes administrativos. Há inclusive uma análise de risco de fornecedores. Essas análises oferecem melhores parâmetros para os gestores tomarem suas decisões e reduzirem os riscos de interrupção dos contratos.
Por exemplo, é possível ver a variação de preços por item (ex. álcool gel variou 168%) e por região; incluindo quem está comprando mais quantidade, favorecendo, portanto, a coordenação. Também é possível ver os valores totais dos compromissos assumidos pelos fornecedores e avaliar suas capacidades de cumprir os contratos.
Essas informações são um ótimo avanço em linha com as recomendações internacionais para que a mitigação de riscos seja integrada aos procedimentos de compras públicas para bens essenciais, a fim de criar cadeias de suprimento resilientes e evitar interrupção nos fornecimentos. O Banco Mundial também recomenda que a seleção de fornecedores seja precedida de uma rigorosa avaliação do mercado fornecedor, levando em conta sua capacidade, os potenciais resultados e riscos que afetem a efetividade do contrato, aplicando os instrumentos de gestão estratégica de compras em suas operações de financiamento.
O resultado dessa pandemia pode ser uma oportunidade para uma mudança no marco regulatório, na mentalidade e na cultura necessárias à adoção de uma gestão estratégica das compras públicas, com o fim de efetivar compras norteadas pela resiliência e baseadas na seleção de fornecedores idôneos para além das condições de habilitação. À exceção dos casos de irregularidades motivados por má-fé, ainda é possível evitar muitos outros.
Esta coluna foi escrita em colaboração com Luciano Wuerzius, especialista sênior em aquisições do Banco Mundial.