No Brasil, setor ainda não está organizado para tratar pacientes idosos com mais de uma doença crônica
Shireen Mahdi
Folha de S. Paulo
Nós mesmos temos ou conhecemos pessoas com problemas de saúde que requerem um cuidado constante, como hipertensão, diabetes, colesterol elevado, dores na coluna, ansiedade e depressão, entre tantos outros. São as chamadas doenças crônicas ou não-transmissíveis. Elas representam quase 64% dos anos de vida perdidos por invalidez e cerca de 74% das mortes em nível global. No Brasil, essas proporções são ainda mais altas: cerca de 71% e 76%, respectivamente.
Embora esses números sejam impressionantes por si sós, eles escondem um desafio ainda maior: o fato de muitas pessoas – e, no caso dos idosos, a maioria – terem mais de uma doença crônica ao mesmo tempo. Isso é o que os especialistas em saúde pública chamam de multimorbidade. Estima-se que, no mundo, cerca de dois terços das pessoas acima de 65 anos apresentem pelo menos duas condições crônicas concomitantes.
No Brasil, os dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 revelam que, dentre os idosos brasileiros, 56,5% têm multimorbidade. Esse desafio se torna ainda mais urgente porque a população brasileira vem envelhecendo muito rapidamente. O número de idosos aumenta em cerca de 1 milhão de pessoas ao ano e estima-se que, em 2050, quase um terço dos brasileiros terá 60 anos ou mais.
É mais provável que as pessoas com multimorbidade enfrentem hospitalizações prolongadas, necessidade de uso de múltiplos medicamentos e risco aumentado de complicações pós-operatórias. Tudo isso leva a custos mais elevados para o Sistema Único de Saúde (SUS). Entre 2000 e 2015, 53% dos gastos do SUS se concentraram em 15% dos pacientes que apresentavam duas ou mais comorbidades.
O grande problema é que, de maneira geral, os sistemas de saúde, públicos e privados, não estão estruturados para lidar com pessoas com multimorbidade. A atenção à saúde está organizada de maneira fragmentada, considerando cada doença individualmente. Assim, o paciente é encaminhado a um profissional para cuidar da diabete; outro para tratar a hipertensão; outro para a depressão, etc.
O Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde estão conscientes desses desafios e desenvolvendo iniciativas interessantes.
O Ministério da Saúde, por exemplo, está reformulando a política da atenção especializada para integrá-la à atenção primária, o que assegura coerência entre os diferentes níveis de atenção, minimiza o ônus sobre o paciente e o risco de ele ficar circulando por vários serviços de saúde de maneira desnecessária. Também vem aperfeiçoando a caderneta da pessoa idosa para incorporar a perspectiva multidimensional da pessoa, da família e de seus direitos.
Para além de tais esforços, é preciso que o sistema de saúde olhe a pessoa como um todo e tenha uma atenção primária de qualidade, organizada para identificar, tratar e acompanhar esses pacientes. O sistema de saúde também deve ser capaz de fazer uma revisão apropriada da utilização de medicamentos para abordar o uso racional de fármacos e as questões relacionadas à interação medicamentosa. Requer um sistema de referência bem estruturado, apto para encaminhar os pacientes para os serviços capazes de lidar de forma adequada e integral dos pacientes mais complexos; e um sistema de gestão e informação equipado para captar a utilização dos serviços de saúde e o fluxo de pacientes no sistema.
Como constatado num recente evento do Banco Mundial, o Brasil também se beneficiaria de intercâmbios com outros países latino-americanos, como Chile, Colômbia e Uruguai. A experiência internacional mostra que o envelhecimento e a multimorbidade demandam um sistema de saúde preparado para acompanhar a população ao longo da vida. Construí-lo exige mudança cultural e políticas abrangentes, o quanto antes.
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Este artigo foi escrito em colaboração com meus colegas Roberto Iunes (economista sênior de Saúde do Banco Mundial) e Ana Maria Lara Salinas (consultora de Migrações e Saúde)