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OPINIÃO9 de setembro de 2022

Que vantagem Maria leva?

O paradoxo de gênero no Capital Humano

Pablo Acosta
Folha de S. Paulo

Ir à escola, aprender com qualidade, garantir uma boa saúde na infância e vida adulta são elementos que fabricam o potencial produtivo de um indivíduo. O Índice de Capital Humano (ICH) procura materializar essa ideia, por meio de um único número que mede a produtividade futura. Mas, e depois? Em que local é realizado este potencial produtivo?  No mercado de trabalho. É neste lugar que o capital acumulado por um indivíduo é utilizado. Em outras palavras, é o trabalho que permite com que o potencial produtivo se transforme em efetivo. Neste salto do potencial para o efetivo, da acumulação para a utilização, um grupo essencial da população é deixado para trás: as mulheres.

O Relatório de Capital Humano para o Brasil do Banco Mundial mostra que as mulheres desenvolvem 60% do seu potencial produtivo, medido pelo ICH. Os homens, por outro lado, alcançam apenas 53% do seu capital humano. As mulheres têm mais anos de estudo, possuem menor taxa de abandono e repetência escolar. Enquanto 26% das alunas chegam ao Ensino Médio com distorção idade-série, este percentual para alunos homens é de 36%. Ainda, em 2017, as notas da avaliação nacional (SAEB) mostraram que os meninos têm melhor desempenho que as meninas em matemática, mas em português a vantagem é do sexo feminino. Esta mesma análise não foi possível em 2019 - última edição do SAEB divulgada - devido à ausência inusitada da desagregação por sexo nos resultados.  

Se a diferença de gênero é ambígua em termos de aprendizado nas disciplinas básicas, nos indicadores de saúde é bastante clara. O Relatório de Capital Humano para o Brasil mostra que, enquanto uma brasileira de 15 anos de idade tem, em média, 91% de probabilidade de sobreviver até os 60 anos de idade. A chance de um homem da mesma idade de sobreviver na idade adulta é de 82%. Mortes por eventos externos, como homicídios e acidentes - mais prevalentes entre o sexo masculino - explicam este resultado. A vantagem comparativa das mulheres em saúde se soma à dianteira em educação e, juntas, produzem um único resultado: um Índice de Capital Humano 13% maior para mulheres do que a dos homens.

Contudo - usando uma expressão popular - que vantagem Maria leva em acumular este capital humano? Maria, aqui, é representante de todas as mulheres brasileiras e possui “uma força que nos alerta” - como diria Milton Nascimento. Dados da PNAD do último trimestre de 2019 mostram que enquanto 67% dos homens maiores de 14 anos estavam ocupados no mercado de trabalho, apenas 47% das mulheres estavam na mesma condição. No Norte, a diferença é ainda maior: enquanto também 67 % dos homens estavam ocupados em trabalhos formais ou informais, apenas 42% das mulheres exerciam funções remuneradas. A diferença no nível de ocupação é apenas a primeira, de muitas, desigualdades no mercado de trabalho. Salários mais baixos, dupla jornada, assédios sexuais são alguns de tantos outros entraves que as mulheres encontram em sua caminhada fatigante. O troféu das mulheres conquistado durante a acumulação de capital humano se desintegra no mercado de trabalho.

O Relatório de Capital Humano se debruça sobre esse fenômeno e pergunta: “Quanto do capital humano acumulado é, de fato, utilizado?”. Neste momento, o ICH conquista mais uma letra e se transforma no ICHU: Índice de Capital Humano Utilizado. É neste mesmo instante que avistamos o paradoxo de gênero. Enquanto homens, que estavam na retaguarda, acumulam e empregam 40% do seu capital humano, as mulheres reúnem e utilizam apenas 32%. Isto significa que quase metade do capital humano das mulheres é extraviado na porta do mercado de trabalho. Para os homens, esta perda é de aproximadamente um quarto. As mulheres afrodescendentes são ainda mais penalizadas e acabam acumulando e utilizando apenas 29% da sua produtividade potencial. Elas são duplamente reprimidas pela sociedade: pela raça e pelo gênero.

O ICHU nos faz refletir sobre dois grandes obstáculos que as mulheres enfrentam na entrada do mercado de trabalho. O primeiro, e talvez, mais abstrato, são os fatores culturais. Dados do World Value Survey mostram que 22% dos brasileiros acreditam que homens são melhores executivos de negócios do que as mulheres. Em países como os Países Baixos ou Nova Zelândia, este percentual é de cerca de 6%. Estamos a mil léguas de uma sociedade que acredita no potencial produtivo das mulheres. O segundo obstáculo, e mais concreto, são as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos. Dados do IBGE mostram que as mulheres dedicam 10,4 horas por semana a mais que os homens aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas, incluindo filhos. Esta diferença - que representa um quinto de uma jornada usual de trabalho - tem crescido ao longo de anos.  

Políticas públicas são e, devem ser, capazes de alavancar a utilização do capital humano feminino. A literatura acadêmica[MEDDC2]  demonstra, por exemplo, que a adequada cobertura de creches e pré-escolas tem impacto positivo sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho.  O ICHU além de uma estatística, é, sobretudo, um convite para que possamos pensar e debater políticas que promovam a equidade de gênero.

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Esta coluna foi escrita em colaboração com Giovanna Quintão, profissional júnior associado.

 

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